CUIDADO/TRABALHO
A dimensão do cuidado, nos contextos de luta por moradia, diz respeito às práticas cotidianas que alimentam e fortalecem os passos da luta. Um trabalho desenvolvido especialmente por mulheres que cuidam e sustentam tantas vidas a partir da construção de estratégias de sobrevivência e a aposta no fortalecimento das relações comunitárias.
“a coragem de cuidar”
Maria Clara
“Porque não tem nada neste mundo que disputa com a força, a coragem de cuidar.”
O cuidado ganha forma na fala doce e forte de Dona Maria Clara sempre muito atrelado ao trabalho e à luta. Para ela, cozinhar, lavar roupa, carregar os filhos e netos, esteve sempre presente nas práticas de cuidado. O cuidado, especialmente com as mulheres, trata do acolhimento, da produção de redes, “da comunhão de partilha de cuidar das coisas das pessoas e da gente, da minha casa, de tudo”. Dona Maria Clara evoca o cuidado das mulheres, o trabalho do cuidado, a força das relações de amparo… e afirma: “A gente cuida do mundo e a gente não sabe que cuida. A gente cuida do mundo e não sabe que cuida”. Deixar o almoço pronto antes de sair para a luta, abrir as portas para “cuidar da barriga da mulher que estava parindo”, servir o caldeirão de sopa, de Canjiquinha, para aquecer e alimentar os corpos, fazer a gestão das crianças que vão para a escola e da proteção das famílias em ocupação, são alguns dos gestos elencados por Dona Maria para dizer de sua trajetória de luta e cuidado.
Rafaela
“É muito difícil você ser mulher. Porque você carrega um peso… sozinha pra ter que dar conta disso tudo.”
Para Rafaela, as práticas de cuidado exercidas por ela estão intimamente relacionadas ao modo como se constituem suas relações familiares. Ela destaca que além de trabalhar desde muito nova, sempre precisou exercer atividades de cuidado familiar, tanto em relação ao filho, assumindo a função de mãe solo, quanto em relação a outros membros de sua família, tomando para si o compromisso com diferentes cuidados. Somado a isso, Rafaela também desempenha o papel de líder da ocupação Chico Prego, acumulando ainda mais responsabilidades. Nesse contexto, ela nos conta que conciliar suas tarefas sempre foi um trabalho árduo, depositando sobre ela o peso de sustentar essas distintas posições. Em suas palavras, “Sempre sozinha pra ter que dar conta disso tudo. Ser mulher, ter que representar na escola do filho. Às vezes meu filho me cobrava. Eu tinha uma reunião. Eu tinha uma articulação, aconteceu um problema na ocupação e eu tinha que faltar a reunião da escola do meu filho”. Ela associa seu dever de cuidar com o fato de ser mulher, denunciando os efeitos da construção das posições de gênero forjados na nossa sociedade.
Baiana
“Aí eu trazia a carcaça de galinha de casa, fazia comida pro pessoal que ficava o dia todinho trabalhando com fome.”
Para Baiana, as relações de cuidado e de trabalho constituíram-se, desde muito cedo, como estratégias de luta em meio a tantos desafios experimentados. Ao narrar sua trajetória, a liderança vai descrevendo o quanto as práticas de cuidado, seja no âmbito familiar ou no âmbito profissional, garantiram muitas vezes o sustento e a possibilidade de afirmação da vida. Ela conta, ainda, as implicações de ser uma mulher que cuida e que luta apontando para as dificuldades e a sobrecarga que muitas mulheres enfrentam ao desempenhar tantas funções, afinal, “tem que trabalhar, tem que cuidar da família, tem que cuidar do esposo, tem que cuidar do filho”. Na relação com a comunidade, Baiana está sempre empenhada na realização de almoços comunitários, na reunião de cestas básicas e na busca por doações para os integrantes da ocupação. Garantindo o café coado e a “sacola de pão na mesa para todo mundo”, nos ensina sobre a aposta no trabalho do cuidado que fortalece e alimenta os passos da luta. Com ouvidos atentos e sensíveis às demandas que surgem e um corpo disposto a construir caminhos e soluções, Baiana anuncia a força das práticas de proteção e de cuidado que a forjam enquanto uma mulher-liderança.